sexta-feira, 12 de fevereiro de 2010

ARTIGO



Drama da fome: 
Feridas abertas que os poderosos insistem em não curar


(*) José Romero Araújo Cardoso


As paisagens urbanas e rurais, através de sua geografia humana, sobretudo nas periferias do capitalismo globalizado que marca os dias atuais, vem sendo caracterizadas pelas manifestações aviltantes cada vez mais agudas do drama da fome, as quais cristalizam o significado da exclusão de grande parcela dos seres humanos, espalhada pelos quatro cantos do planeta, a qual ainda não foi beneficiada pelas conquistas tecnológicas e por sua capacidade de gerar emprego e renda decentes que garantam melhores dias, formulando de forma efetiva o real sentido da cidadania. 


Os donos dos meios de produção selecionam metodicamente espaços que são e serão beneficiados pela ação do capital em suas múltiplas metamorfoses e interesses, relegando ao esquecimento àqueles que não interessam de imediato à reprodução das estruturas de poder. São os espaços marginalizados que não servem a curto ou médio prazos, muitas vezes também a longo prazo, aos propósitos definidos em infindáveis reuniões temperadas pelo gosto refinado por dinheiro em quantidade absurdamente estratosférica.
 
Assim, cotidianamente milhares de pessoas são atiradas no fosso da miséria, da pobreza e da fome, pois sem perspectivas de melhores dias amargam a triste realidade do abandono e do infortúnio, sendo submetidas à escravidão da falta de interesses dos poderosos queas enxergam apenas como frios números das estatísticas que permitem absurda maximização de lucros com interessante minimização de custos para àqueles que são contemplados pelas benesses do sistema.


Citando exemplo clássico presente nas distorções inter-regionais brasileiras, indubitavelmente podemos afirmar que em consonância com o despovoamento do campo no nordeste brasileiro desponta de forma imperiosa o agrobusiness em determinados espaços rurais previamente selecionados, dotado de tecnologia de primeiro mundo. Em contrapartida, a agricultura familiar vem sendo notavelmente prejudicada e desestimulada em razão que percentual significativo dos investimentos garantidos pelas políticas públicas voltadas para o agro, viabilizadas pela ação do Estado, destina-se ao sucesso da produção agrícola concentrada em atender as exigências do mercado externo a fim de gerar divisas para fomentar a política paternalista que caracteriza a atuação do Estado em garantir os privilégios da poderosa classe que detém o poder.
Além do mais, os poucos recursos destinados ao fomento à agricultura familiar não vem acompanhado de necessária e eficaz instrução técnica que permita favorecer o sucesso da produção e da comercialização agropecuária, não esquecendo ainda que existem graves denúncias de corrupção envolvendo a destinação dos recursos para este setor produtivo que garante inúmeros benefícios para suprir o mercado interno, ao contrário do primo rico que se dedica a atender as exigências externas cada vez mais sofisticadas. 

O resultado óbvio é o recrudescimento da situação de penúria dos que sofrem com a intransigência da lógica do capital, avançando de forma desumana as conseqüências trágicas da desnutrição. Crianças, elos frágeis da teia maléfica montada pelo capitalismo, perdem a visão por falta de alimentos, ficando apenas no couro e no osso devido à ausência de proteínas que possam garantir a sobrevivência e engrossando dia-a-dia as estatísticas referentes à mortalidade infantil, motivada por doenças provocadas pela fome.



Esqueléticas e famintas desfilam suas desditas pelos espaços menos privilegiados das favelas, alagados, palafitas, pontes, campos adustos, lócus urbanos sem infra-estruturas e outros locais usados como moradias, pois sinônimos da ausência de compromissos, esses lugares se constituem nos territórios da fome e das privações.


Enquanto isso, os poderosos que mandam e desmandam não demonstram nenhuma sensibilidade, nenhuma comoção, nenhuma atitude concreta, que seja pragmática de fato, a qual possa reverter o quadro surreal que vem tomando aspecto tétrico, cada dia pintado de forma mais intensa com cores berrantes que revelam o drama da miséria e da fome, da insensibilidade de parcela intransigente da humanidade satisfeita e feliz com o esquema montado sobre privilégios.


Recantos esquecidos espalhados na imensidão nordestina abrigam populações famintas e desvalidas cujas condições de vida são iguais às apresentadas pelos grandes bolsões de carência crônica do continente africano, pois os indicadores sócio-econômicos teimam em se repetir em cada amostragem populacional que busca revelar a situação do povo brasileiro, embora saibamos que muitas foram propositalmente maquiadas para atender determinados interesses.


Mães aflitas, viúvas das secas e dos descasos, choram pelo destino que o sistema relegou aos seus filhos, aos quais tudo é negado, desde um prato de comida decente à educação de qualidade que possa garantir-lhes um futuro melhor, com esperanças e felicidades, não esquecendo ainda que saúde também é algo negado de forma injuriosa e infame. A injustiça tornou-se palavra de ordem no imaginário dos poderosos. Historicamente a pobreza vem sendo tratada como caso de polícia, pois exemplo disso temos na forma desumana como os aparelhos repressivos do Estado trataram Canudos, como verdadeiro caso de segurança nacional, simplesmente por que a sociedade alternativa fundada no sertão baiano conseguiu superar os limites extremos da exploração desmedida capitaneada pelo draconiano latifúndio que impera desde a formação sócio-econômica brasileira.


A intensificação do drama da fome foi profetizada e alertada pelo cientista Josué Apolônio de Castro (Recife – 05/09/1908 – Paris – 24/09/1973) quando de sua magnífica campanha em prol da erradicação do maior drama da humanidade, mas desde então nada foi feito, pelo contrário, pois o problema ainda está sendo encarado como um tema proibido, o qual escancara a mesquinhez contida na manutenção e na reprodução das estruturas de poder que privilegiam poucos e humilham a grande maioria excluída do complexo processo que caracteriza os dias atuais.


A ousadia e a independência de Josué de Castro, quando denunciou a fome como flagelo fabricado pelos homens, foram responsáveis por momentos ímpares na história da humanidade, mas que infelizmente responsabilizaram-se também pelos momentos de angústia que o levaram à morte prematura em seu exílio na França, imposto pela intransigência dos militares que derrubaram o governo constitucional de João Goulart, histórico herdeiro político de Vargas.


Refletir sobre as bases do pensamento do importante teórico nacional, reconhecendo a importância da atualidade de suas pregações e defesas, é condição sine qua non para que busquemos lutar pela superação dos aviltantes contrates que separam incluídos e excluídos, contribuindo dessa forma para a consolidação de um mundo melhor, com justiça social e harmonia para o gênero humano. Insistindo em não curar as feridas abertas com o drama da fome, os poderosos do planeta alimentam insatisfações cujas conseqüências poderão se revelar imprevisíveis, pois a partir do momento que o grito dos excluídos tornar-se mais intenso e estridente talvez a composição contida na superestrutura não surta tanto efeito a fim de abafar as reclamações que se avolumam de forma impressionante devido a ausência de amor que vem sendo observada na conjuntura em que imperam a ganância e a falta de compromissos com a sofrida realidade humana daqueles que estão à espera de olhares mais humanos e compenetrados com suas situações desesperadoras.


(*) José Romero Araújo Cardoso. Geógrafo (UFPB). Professor-adjunto do
Departamento de Geografia (DGE) da Faculdade de Filosofia e Ciências
Sociais (FAFIC) da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte
(UERN). Especialista em Geografia e Gestão Territorial (UFPB) e em
Organização de Arquivos (UFPB). Mestre em Desenvolvimento e Meio
Ambiente (PRODEMA – UERN).

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