domingo, 31 de outubro de 2010

Plantas medicinais: tradição milenar aliada à pesquisa multidisciplinar, artigo de Vanderlan da Silva Bolzani


"No Brasil, com uma biodiversidade invejável e um legado de uso tradicional das nossas culturas indígenas, temos know-how para uma medicina fundamentada em plantas igual ou até mais avançada que as praticadas nos países centrais e da Ásia"
Vanderlan da Silva Bolzani é professora titular do Instituto de Química e vice-diretora da Agência de Inovação da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp). Artigo escrito para o "Jornal da Ciência":

A cultura humana tem sido profundamente influenciada pelas plantas, em especial por aquelas identificadas como medicinais. Este fato se deu por um longo processo de seleção e de usos por populações indígenas, em todo o planeta. Hoje continuam sendo foco de fascínio e investigação científica e se incluem entre os grandes avanços que norteiam a ciência de plantas na chamada era pós-genômica.

Um giro pelo passado evidencia como as relações com as plantas influenciaram, sob todos os aspectos, a evolução econômica e social de povos distintos, em diferentes regiões: dos navios de madeira dos vikings na Escandinávia às casas primorosamente esculpidas pelos maoris da Nova Zelândia; das tribos shipido da Amazônia peruana, com suas zarabatanas de 3 metros de comprimento, até os navarro das áreas desertas da América do Norte, que se destacaram pelas habitações de adobe e pelos belíssimos tapetes estampados.

A dependência das espécies vegetais estende-se à comida, ao abrigo, ao vestuário, ao transporte, aos rituais religiosos e, em especial, ao tratamento de males e enfermidades, evidenciando seu valor.

As plantas medicinais já eram codificadas na Grécia Antiga, por Pedanius Dioscorides, que, no século I, escreveu um compêndio sobre espécies de uso tradicional denominado De Materia Medica, onde cerca de 500 plantas foram descritas. Este documento, aceito até a Renascença, não foi referendado pelo Ocidente, que registra a obra Pen Tsao, feita pelo imperador chinês Shen Nung (2000 A.C.), como provavelmente a primeira compilação sobre plantas com propriedades medicinais. Mas foi no período renascentista que houve uma explosão do uso de plantas, principalmente aquelas descritas no documento de Dioscorides.

São inúmeros os relatos desta época sobre o uso de plantas medicinais. O mais popular, The Herbal, foi escrito por volta de 1597 pelo inglês John Gerard, sendo um dos poucos livros editados por mais de 400 anos e o mais importante documento sobre plantas de uso tradicional em língua inglesa. Muitos médicos na Renascença buscavam nesta obra descrição sobre as propriedades curativas das plantas registradas.

Um exemplo dessas descrições está registrado na página 646 para "foxglove" (dedaleira) Digitalis purpurea (Scrophula-riaceae), espécie usada tradicionalmente para tratamento da hidropisia, e 200 anos depois destacada pelo isolamento dos glicosídeos cardíacos digitoxina e digoxina, até hoje em uso como cardiotônico e antiarrítimico.

Outro exemplo é o das cascas de Salix alba L. (Salicaceae) e de Filipendula ulmaria (L.) Max. (Rosaceae), popularmente usadas como antitérmico. Delas foram isoladas a salicina e a salicigenina, estruturalmente derivadas de ácido benzoico e reconhecidas pelas propriedades anti-inflamatórias e analgésicas. Estas substâncias serviram de modelo para a síntese da aspirina, um dos fármacos mais difundidos e comercializados em todo o mundo.

No entanto, a maior prova da importância das plantas medicinais são os fármacos antitumorais hoje em uso clínico. Cerca de 60% deles têm origem em plantas, a maioria incluída na categoria de uso popular ou medicinal. Das vincristina/vimblastina (Vinca rósea) às podofilotoxinas (Podophyllum, peltatum), uma série representativa de substâncias naturais de plantas certifica a importância das plantas medicinais em todo o mundo.

Pesquisa e desenvolvimento

O avanço terapêutico das plantas medicinais em países desenvolvidos, com destaque para a Europa, e em desenvolvimento, como China e Índia, é marcado pela associação entre vasto conhecimento tradicional e muitos estudos de pesquisa básica e desenvolvimento tecnológico.

Assim, a importância das plantas medicinais vai além das suas propriedades terapêuticas. Ao longo dos últimos anos, sua validação e padronização química propiciaram um avanço excepcional nas técnicas utilizadas para mapear o perfil metabólico de espécies, permitindo uma riqueza de informações científicas e tecnológicas, além de facilitar o desenvolvimento industrial do setor. Com investimento em pesquisa e desenvolvimento (P&D) em todas as etapas da cadeia produtiva, do cultivo à prateleira, os padrões de qualidade dos fitoterápicos, aliados aos marcos regulatórios, garantem à sociedade uma medicina de valor terapêutico com eficácia e segurança.

No Brasil, com uma biodiversidade invejável e um legado de uso tradicional das nossas culturas indígenas, temos know-how para uma medicina fundamentada em plantas igual ou até mais avançada que as praticadas nos países centrais e da Ásia.

A produção de fármacos brasileira, seja de natureza sintética, baseada em plantas medicinais ou em fitoterápicos, é pouco desenvolvida. O país investe pouco, e o setor farmacêutico prefere comprar insumos da China e da Índia, a criar nos seus ambientes a cultura da inovação para desenvolvimento. Este é um tema de natureza complexa, já tratado em artigo publicado na revista Ciência&Cultura, vol. 62, 2010, p.4.

Como se vê, trata-se de um cenário complexo, avesso a abordagens simplistas e superficiais, como as feitas pela série de reportagens exibidas pela Rede Globo no programa Fantástico. O conhecimento sobre plantas medicinais no Brasil vem evoluindo a passos largos e, nestes últimos anos, temos assistido a um avanço significativo. Esse avanço tem ocorrido com a participação de empresas de grande porte do ramo farmacêutico e investimentos no desenvolvimento, produção e comercialização de vários produtos.

O Brasil de hoje é inovador em vários aspectos, conta com uma massa crítica de pesquisadores e um setor industrial apto ao desenvolvimento de P&D. As plantas medicinais da nossa flora têm um enorme potencial de exploração que, se bem estruturado, trará grande benefício econômico e social ao país.

O programa de plantas medicinais criado pelo Ministério da Saúde, para ser aplicado no Sistema Único de Saúde (SUS), poderá estimular o setor industrial a investir em várias espécies, já suficientemente estudadas para oferecer segurança em sua utilização.

Desafios

Evidentemente, não é uma tarefa trivial e ainda temos um longo caminho a percorrer no que se refere à industrialização e comercialização de plantas medicinais e fitoterápicos. Aqui, é inevitável uma comparação com os países centrais, onde a inovação tecnológica tem como base um sistema de educação sólido, a geração de ciência de fronteira e um setor industrial apto a absorver esse conhecimento e transformá-lo em P&D.

Esse modelo, consolidado desde o século XX, exige ação constante do Estado, das organizações empresariais, sociais e dos cidadãos (professores, técnicos, cientistas, gestores, empresários, políticos). Ele garante uma integração permanente entre o avanço científico e tecnológico, essencial para a geração de tecnologia de ponta e riqueza econômica.

A falta de conhecimento mínimo desejável a qualquer cidadão é outro fator relevante, que foi muito explorado nas reportagens produzidas pela TV Globo. Uma população educada e minimamente consciente não se deixaria enganar por falsos médicos, curandeiros e suas poções e chás milagrosos.

Por outro lado, cabe ao governo exercer um rigor maior sobre o setor. As plantas, no senso comum, estão sempre associadas ao "natural" e à crença de que "se não fizer bem, mal não faz". As espécies medicinais não são milagrosas. Elas, como todas as plantas, desenvolveram um arcabouço metabólico complexo e rico em substâncias biologicamente ativas, como forma de sobrevivência, regulação e manutenção em seus habitats distintos de ocorrência. Tais substâncias podem possuir propriedades farmacológicas e, portanto, ser úteis para a espécie humana, desde que cientificamente avaliadas quanto à eficácia terapêutica e segurança.

O desenvolvimento de fármacos, seja de origem sintética, extrato in natura ou fitoterápicos, exige a devida estrutura de produção e controle. É uma questão de política industrial estratégica para o desenvolvimento econômico, social e da saúde do país.

Acredita-se que, com a implantação da Política Nacional de Plantas Medicinais e Fitoterápicos, o setor dê um salto qualitativo e induza o governo a destinar mais investimentos que possibilitem a expansão das pesquisas com plantas de reconhecido valor medicinal oriundas da nossa rica biodiversidade.

Nota da redação: Este artigo foi publicado na edição 677 do Jornal da Ciência, que tem conteúdo exclusivo em sua versão impressa. Informações sobre como assinar a publicação podem ser obtidas pelo e-mail jciencia@jornaldaciencia.org.br ou pelo fone (21) 2109-8989.



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