segunda-feira, 1 de novembro de 2010

França busca novo estágio na cooperação com o Brasil

A cooperação científica franco-brasileira tem uma tradição de anos, mas deverá ser repensada no sentido de "mais transferência de tecnologia, inovação, desenvolvimento", nas palavras da embaixadora delegada para a ciência, tecnologia e inovação da França, Catherine Bréchignac. O aprofundamento das relações entre os dois países segue mudanças na diplomacia científica, marcadas pela maior importância dos países emergentes, conforme destacou a cientista, especialista em física atômica (nuclear e molecular), em entrevista ao "Jornal da Ciência".

Catherine Bréchignac visitou o Brasil para participar do Congresso Internacional de Microscopia (IMC17), promovido a cada quatro anos pela Federação Internacional de Sociedades de Microscopia (IFMS, na sigla em inglês), e que aconteceu em setembro, no Rio.

A pesquisadora aproveitou para visitar o escritório brasileiro do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS, em francês), na Maison de France, sede do Consulado-geral da França no Rio. A instalação do escritório brasileiro, inaugurado em junho, representa "uma vontade verdadeira de trabalhar com o Brasil" e foi planejado ainda quando Bréchignac presidia a instituição máxima da ciência francesa. Além de presidenta, de 2006 a janeiro de 2010, ela foi diretora-geral do CNRS de 1997 a 2000.

Bréchignac foi indicada embaixadora para C&T do Quai d'Orsay depois de não ter sido reconduzida à frente do CNRS. Em junho passado, foi também eleita secretária perpétua da Academia de Ciências da França. Sua atuação inclui ainda, desde 2008, a presidência do Conselho Internacional para a Ciência (ICSU, em inglês) e, desde 2009, a presidência do Alto Conselho de Biotecnologia da França.

Ainda como parte de sua visita ao Brasil, Bréchignac participou da cerimônia de gala para entrega do Prêmio L'Oréal/Unesco para Mulheres Cientistas, no Copacabana Palace.

"Levou muito tempo para termos mulheres na ciência. Hoje, temos mais e mais. Mas, infelizmente, nem sempre elas atingem o máximo da carreira", afirmou.

Leia a seguir os principais trechos da entrevista com a embaixadora:

- Qual o papel do Brasil para a cooperação científica internacional da França?

Temos com o Brasil uma colaboração científica de longa data. Atualmente, é necessário repensar um pouco nossa colaboração científica no sentido de ter mais transferência de tecnologia, inovação e desenvolvimento do que ficar apenas na ciência conceitual e nas ciências humanas e sociais. Atualmente, a ciência evolui, as demandas da sociedade também mudam. Portanto, devemos orientar nossa colaboração mais na direção da pesquisa tecnológica e da inovação, que não desenvolvemos muito com o Brasil.

- A diplomacia científica mudou. Qual o papel da ciência brasileira no mundo?

O Brasil, como a China e a Índia, faz parte dos países emergentes. Não é a mesma coisa entre o Brasil, a China e a Índia. Diria que a China está se destacando enormemente. Mas o Brasil quase ultrapassa a Índia, que avança mais lentamente porque o país está numa situação mais complicada. Além disso, vocês têm um presidente que promoveu muito o país e isso permite ver um Brasil em crescimento real.

- Isso muda a diplomacia científica francesa?

Sim. Se comparamos a cooperação com os países da Ásia, por exemplo, começamos há 40, 50 anos, com o Japão. Tivemos uma colaboração muito forte com o Japão e uma relação tecnológica. Na robótica, por exemplo. Em seguida, tivemos um crescimento forte com a China e com a Coreia. Mas a cooperação brasileira é anterior e agora a retomamos ainda mais forte. É um país que conta muito para nós.

- Qual a importância do escritório brasileiro do CNRS para a cooperação?

O escritório do CNRS tem o papel de ajudar toda a diplomacia francesa e trabalhar por nossos países. Claro que é acoplado ao CNRS [e não ao Ministério dos Assuntos Estrangeiros e Europeus], mas ele é o maior organismo [científico] europeu. Então acho que é importante ter um escritório no Brasil. Isso significa uma vontade verdadeira de trabalhar com o país.

- Como a crise econômica está afetando o financiamento da pesquisa na Europa?

Temos um governo [na França] que tem favorecido a pesquisa desde seu começo. Claro que se deve ter atenção e não desperdiçar dinheiro, não importa como [durante a crise], mas temos orçamentos que são protegidos, ao contrário de outros ministérios. Por exemplo, o Ministério dos Assuntos Estrangeiros tem um orçamento menos protegido que o CNRS, razão pela qual decidimos que é bom trabalhar mos juntos porque isso permite compensar um pouco o que um e outro podem fazer.

- Como a pesquisa brasileira em biotecnologia é vista?

Muito positivamente. Vocês têm um desenvolvimento e uma acolhida, sobretudo no que se refere aos organismos geneticamente modificados (OGMs), que nós não temos em nosso país, acredito eu, porque temos um pouco de medo dos OGMs, já que nosso país é pequeno, ao passo que vocês têm espaço e podem plantar em algumas partes sem afetar outras. E sua pesquisa em biotecnologia é positiva. A nossa é boa também. Um organismo como o Inra [Instituto Nacional de Pesquisa Agronômica, em francês] está realmente em alto nível, mas estamos impressionados por ver a velocidade com que vocês foram capazes de desenvolver biocombustíveis.

- Há oportunidades de cooperação nesse campo?

Sim. A biotecnologia não é apenas plantas e combustíveis. É também medicamentos, micro-organismos geneticamente modificados. Por exemplo, temos trabalhos com bactérias para estações de tratamento de água e esgoto. Se trabalharmos juntos em biotecnologia, certamente ganharemos.

- No Brasil, falta uma lei para a pesquisa com biodiversidade. Há alguma experiência na França que poderia ser replicada?

Refletimos muito sobre essa questão da biodiversidade, mas o que deve ser reforçado é que a biodiversidade não significa a conservação de todas as espécies. Ao contrário, desde que o planeta existe, 99% das espécies que viveram na Terra estão mortas e não existem mais. Porque essas espécies morreram, outras surgiram. Então, o que é muito importante na biodiversidade é sua dinâmica. Isso a França compreendeu muito bem. Pode não estar perfeitamente compreendida, mas, em todo o caso, existe na lei francesa.

- Qual sua avaliação da participação das mulheres na ciência hoje?

Levou muito tempo para termos mulheres na ciência. Hoje, temos mais e mais. Porém, infelizmente, nem sempre elas atingem o máximo da carreira. Muitas começam e depois não chegam ao topo. Se você pega o CNRS, por exemplo, à entrada, temos 40% de mulheres e 60% de homens, no total das disciplinas. Mas, em seguida, quando se começa a subir na carreira, passar a professor [na universidade pública francesa, professeur é, além da atividade profissional, um cargo de estágio avançado na carreira], chegar a níveis mais altos, a proporção de mulheres diminui. É isso que precisa melhorar.

- O problema do "teto de vidro" é mais grave na comunidade científica do que no mercado de trabalho em geral?

Não vi muita melhora real na proporção de mulheres que passaram do "teto de vidro". Isso acontecerá, eu espero. É uma questão da sociedade, porque ainda são as mulheres que cuidam das crianças e é preciso estar disponível para fazer uma carreira. Eu, pessoalmente, quis ter uma carreira e decidi ter filhos muito cedo. Antes de defender minha tese, já tinha dois filhos. Porque disse a mim mesma que, se quisesse ter uma carreira, deveria ter filhos o mais cedo possível, ao contrário da maioria, que diz: "Vou primeiro progredir, defender minha tese, esperar e depois ter filhos." Agora, não acho que isso seja solução. É preciso haver soluções sociais. É preciso ter a possibilidade de deixar os filhos em creche, é preciso também que os homens dividam os serviços domésticos. Neste momento, os casais formam-se e desfazem-se muito rapidamente. Então, quem cuida das crianças? Todas essas são questões da sociedade que estão mudando. (Vinicius Neder)


Fonte: Jornal da Ciência

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Identifique-se e poste o seu comentário e logo abaixo, o seu e-mail para um possível retorno.